r i t m u n d a n o
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Teorias do Ritmo
A noção de ritmo, embora encontre seu núcleo de sentido atrelada ao campo da música, é transversal a diversas esferas do pensamento e da ação humanas. Este projeto de pesquisa busca investigar os fenômenos rítmicos em suas diversas escalas temporais, seja no âmbito das funções naturais (ritmos infra-, ultra- e circadianos, referenciais de temporalidade lunares, solares, sazonais, etc), seja através das expressões culturais e sociais dos ritmos (os ritmos das músicas, a semana de trabalho, calendários de ritos e festas, temporalidades dos contextos sociais e das técnicas do corpo, etc). Embora conte com uma bibliografia transdisciplinar que bebe de diversas fontes (filosofias da duração, antropologia do tempo, fenomenologia de processos temporais, cronobiologia etc.), o projeto se iniciou a partir do choque entre duas obras de referência, complementares e básicas: “Elementos do Ritmo” de Aristóxeno de Tarento (ca 343 a.C) e “Elementos de Ritmanálise” de Henri Lefebvre (1992 [2021]). Embora afastadas pelas “zonas disciplinares” (música X ciências sociais) e muito afastadas pelo tempo, essas duas obras abordam o ritmo de uma perspectiva formal, empírica e perceptiva muito similar, podendo-se considerar a obra de Lefebvre como herdeira indireta - e possivelmente inconsciente - das concepções de Aristóxeno. Desses dois autores aproveitamos conceitos-ferramentas que nos ajudam a pensar o ritmo em seus aspectos performativo e criativo: ritmanálise e ritmopeia.
Ritmanálise (Lefebvre)
Em seu último trabalho, publicado postumamente em 1992, o sociólogo francês Henri Lefebvre propõe as bases de uma "ciência nova em vias de constituição": um estudo dos ritmos em diversos contextos, mas com ênfase no social. Éléments de Rhythmanalyse ('Elementos de Ritmanálise') aborda o ritmo da jornada midiática, das manipulações do tempo, dos "adestramentos", mas também da música.
Lefebvre, com sua ritmanálise, propõe uma "crítica da coisa" ("nada de inerte no mundo...não há coisas, só ritmosmuito diversos") e uma leitura dos ritmos "públicos" do mundo a partir da medida dos nossos ritmos internos, biológicos, psicológicos, em suas palavras: "secretos". "Elementos de Ritmanálise" é considerado um ensaio de ciências sociais. Ele aborda temas como a jornada midiática, os adestramentos, as manipulações do tempo e também a música, de uma perspectiva de "ouvinte" (embora Lefebvre soubesse tocar piano e elabore alguns insights inspirados em sua experiência musical prática).
Ritmopeia (Aristóxeno)
Aristóxeno de Tarento, discípulo e quase sucessor de Aristóteles, escreveu um tratado onde procurava investigar a percepção e criação do ritmo e das "coisas ritmizáveis" na prática musical. Diferentemente dos pitagóricos, que se importavam sobretudo com as relações matemáticas "ideais" ou "perfeitas" das notas, Aristóxeno estava interessado em como percebemos e sentimos o que de fato acontece quando vivenciamos os ritmos, e como se pode engendrar ritmos. O livro ‘Ρυθμικων Στοιχειων (Rhythmikon Stoicheion, "Dos Elementos do Ritmo" ou, na tradução inglesa latinizada: Elementa Rhythmica, sem tradução em português), do qual sobraram fragmentos significativos, trata das coisas capazes de ser ritmizadas (os "ritmizômenos") e mais especificamente das coisas "musicais": sons, palavras e movimentos do corpo – segundo a concepção tradicional grega de “mousiké techné” que não privilegiava os sons em detrimento de outros tipos de “sinal”.
Aristóxeno, nesse tratado, procura entender o que seria uma "coisa ritmizável" ("ritmizômeno"), como percebemos os ritmos e como se dá a criação de ritmos ("ritmopeia"). O livro de Aristóxeno é considerado um tratado de música, mas é importante ressaltar que ele lista textualmente os elementos do ritmo musical como: sons, palavras e movimentos do corpo.
Ritmo musical (música humana e mundana)
O que chamamos no senso comum de "música" costuma ter o sentido de uma "arte dos sons", mas essa ênfase (ou, mais ainda: essa exclusividade) do som como elemento essencial do fenômeno (cultural) denominado "música" não é observada no conceito original grego de "mousiké" nem na maioria das tradições não-ocidentais. Em muitos contextos culturais, por exemplo (incluindo a cultura grega de cerca de 2000 anos atrás) a dança, poesia e música não se separam conceitualmente.As mousiké tekhné (habilidades inspiradas pelas Musas) da cultura grega, incluíam, além de formas musicais (sonoras) stricto sensu, também gêneros poéticos, dramáticos e a dança.
A música era, portanto, concebida como manifestação de uma transcendência veiculada através de atividades que se desenrolavam no tempo. Num tratado do século 5 E.C (De Institutione Musica), o filósofo Boécio elenca três tipos de música: a musica instrumentalis, música realizada pela voz e instrumentos sonoros; a musica humana, resultante dos ritmos fisiológicos e da articulação dos "humores"do corpo humano; e a musica mundana, dos movimentos dos corpos celestes, geradora de toda noção de temporalidade a que estamos submetidos: os ciclos anuais (translação), mensais (lunações), circadianos (rotação), estações do ano, etc.
Ritmos naturais (cronobiologia, ciclos sazonais, cosmofonia)
A nocão de 'música mundana" (a música cósmica, resultante dos movimentos dos corpos celestes e do próprio planeta Terra) e a de "música humana" (os ritmos biológicos do corpo e da psiquê humanas), são concepções antigas de fenômenos que hoje em dia voltam a ser discutidos sob um ponto de vista "científico", depois de serem relegados ao status de "superstições"pelo senso comum acadêmico hegemonicamente positivista dos últimos 2 séculos. Hoje em dia, áreas do conhecimento como a cronobiologia (estudos dos ritmos e temporalidades biológicas) investigam as relações entre os ritmos naturais e a vida cotidiana, não apenas numa perspectiva "ecológica"de preservação de uma "euritmia" entre as escalas mundana e humana, mas também para ajudar a identificar as polirritmias entre natureza e cultura (representadas principalmente pelos ritmos sociais) mas também os choques e arritmias que caracterizam a degradação social/ambiental, as patologias, as crises e outros problemas coletivos que se acentuam no atual período do desenvolvimento do capitalismo global.
Ritmos sociais (calendários, horários, trabalho/descanso/festa)
A relação entre ritmos naturais e culturais pões em xeque a própria dicotomia entre natureza a cultura, bastante discutida (e questionada) no campo das ciências humanas. O exemplo mais notório da complexidade dessas relaçõe talvez sejam os calendários. Distintos grupos sociais ao redor do planeta, ao longo das eras, têm criado formas de organizar a passagem dos dias de acordo com as referências observáveis nos ciclos de origem astronômica (rotação para os dias, translação para os anos, lunação para os meses), gerando formas simbólicas e estruturas numéricas a partir da contagem desses ciclos. Junto a isso, eventos sociais, comemorações, colheitas, dias de mercado e outras situações específicas da vida coletiva determinam uma outra camada dos calendários, superposta mas muitas vezes distinta da camada "natural".
O estudo dos ritmos sociais revela então escolhas e imposições, hábitos e condicionamentos, das ações coletivas e individuais humanas na articulação temporal das atividades. Os horários de trabalho e descanso, períodos de atividade produtiva e festa, suspensões do cotidiano convencionais ou emergentes: esses e outros aspectos são observados na análise rítmica das comunidades e sociedades. Além da ritmanálise, outras áreas de estudo como a geografia do tempo, se propõem a investigar essas situações.